Para um sobrevivente do holocausto, a Siemens possuía a chave que poderia desvendar o seu passado

Para um sobrevivente do holocausto, a Siemens possuía a chave que poderia desvendar o seu passado

image002 A gravely ill Gilbert Michlin, the Auschwitz tattoo showing on his arm, is comforted by his wife, Mireille, August 2012. (Photo by Toby Axelrod)[/caption]

Para um sobrevivente do holocausto, a Siemens possuía a chave que poderia desvendar o seu passado

Toby Axelrod

Eu tinha vinte e três anos quando encontrei meu primo Gilbert Michlin pela primeira vez numa cervejaria próxima ao seu escritório em Paris. Ele usava um terno escuro, com um lenço no bolso do paletó, e seu cabelo escuro e curto estava bem penteado. Falando inglês com um sotaque encantador, ele disse: “Existe uma coisa que eu preciso te contar, eu estive em Auschwitz”. É claro que eu já sabia, mas eu nunca tinha encontrado um sobrevivente antes, quanto mais o meu primo francês que tinha sido um trabalhador escravo da Siemens num campo de concentração. Após a guerra, Gilbert foi estudar nos Estados Unidos e, eventualmente, ele voltou a Paris para se tornar o diretor europeu dos produtos de telecomunicação da IBM. Naquele dia, no final dos anos 1970, Gilbert, então com cinquenta e três anos, nada mais tinha a dizer sobre o Holocausto. Em vez disso, o que ele me contou foi a maneira milagrosa como conheceu sua esposa francesa, Mireille, na América. “Uma garota de Marselha e um rapaz de Paris jamais se encontrariam na França. Alguém deveria escrever uma novela sobre isso”, disse ele sorrindo. Alguns anos depois tornamos a nos encontrar. Mas foi somente em 2006, quando eu morava em Berlim, que eu realmente vim a conhecer Gilbert. Berlim tinha sido uma das últimas estações em seu caminho para a liberdade. Agora, ele e mais três sobreviventes tinham sido convidados para partilhar suas recordações com o público e encontrar representantes da empresa alemã que os tinha “recrutado” em Auschwitz em fevereiro de 1944. Nessa ocasião, Gilbert já tinha oitenta anos e tinha publicado suas memórias, “Of No Interest to the Nation” ( Sem Interesse para a Nação ) em francês e inglês. Ele queria não apenas contar o que lembrava, mas também contribuir com fatos sobre o destino dos seus pais nas câmaras de gás de Auschwitz. A luta contra a negação do Holocausto era a coisa mais importante para ele. Sua nova heroína no momento era a historiadora norte-americana Deborah Lipstadt, que ousou enfrentar David Irving, um negador do Holocausto, e vencer o processo judicial que ele moveu contra ela. Nas suas memórias, Gilbert lembrou a cumplicidade francesa na deportação dos judeus. Ele evocou com carinho o ardente desejo do seu pai de emigrar para a América e a sua rejeição em Ellis Island em 1923, o seu próprio sonho de infância de tornar-se um ator, o choque com a ocupação nazista e a sua prisão pela polícia francesa, junto com sua mãe, às duas horas da madrugada de três de fevereiro de 1944, dois dias antes de completar dezoito anos. Uma semana mais tarde, Gilbert viu sua mãe pela última vez quando ela era levada de caminhão para fora de Auschwitz. Foi naquele campo da morte que o representante da Siemens recrutou Gilbert e mais cerca de cem outros homens para uma unidade de trabalho. A insistência do pai para que Gilbert aprendesse um ofício mecânico salvou a sua vida: ele foi selecionado para a fabricação de armamentos. A Siemens manteve seus prisioneiros juntos na fábrica de Bobrek, mesmo após a evacuação que os SS realizaram com a marcha da morte para fora de Auschwitz em janeiro de 1945. Juntos, eles foram transferidos de Buchenwald para Berlim. Poucos meses mais tarde a guerra terminou. Sessenta e um anos mais tarde Gilbert estava de volta em Berlim. Ao visitar o Memorial do Holocausto, ainda inacabado, ele disse que aquela cerca em cadeia intransponível era muito mais evocativa do que toda a construção de Paul Eisenman. Eu fui até os escritórios da Siemens com os sobreviventes de Bobrek. Cada um contou a sua história. Então, meu primo levantou e insistiu para que a empresa finalmente abrisse seus arquivos para os historiadores para que estes pudessem obter algumas respostas: por que estes trabalhadores escravos foram mantidos juntos? Por que eles foram salvos? Os representantes da Siemens ficaram paralisados, eles não tinham respostas. O arquivo permaneceu fechado. Nos anos seguintes eu fiz algumas pesquisas para Gilbert, encontrando documentos originais sobre sua família em outros arquivos do pós-guerra. Mas era sempre o arquivo da Siemens que o assombrava. Durante muitos anos ele manteve diálogos e correspondência com representantes da empresa, mas nunca conseguiu entrar em seus arquivos. Todos os anos, no aniversário dele, Gilbert e Mireille convidavam vários amigos – sobreviventes e suas esposas, e eu – para almoçar num hotel em Paris. Com champanhe, nós brindávamos à vida. Muitas vezes, Gilbert me conduziu pelas ruas de Paris mostrando os apartamentos onde ele tinha vivido com seus pais, os parques onde costumava brincar quando criança, o hotel onde foi alojado quando voltou a Paris em 1945, emaciado e solitário. Eu nunca consegui entender como Gilbert tinha conseguido voltar a morar em Paris depois de tudo que aconteceu. Mas, de qualquer modo, ele tinha alcançado um equilíbrio, aproveitando sua cidadania americana obtida após a guerra, confraternizando com outros sobreviventes, procurando descobrir o que tinha acontecido aos seus pais, escrevendo seu livro e falando aos jovens franceses sobre a vida dele. No entanto, ele jamais esqueceu os arquivos da Siemens. Em 2010 o historiador da Siemens que possuía a chave dos arquivos da empresa morreu em um estranho acidente, quando os freios da reprodução de um carro histórico da Siemens falharam. Depois disso, a empresa deu alguns passos no sentido de melhorar o acesso aos arquivos. Em 2010, em Munique, ao visitar a empresa, eu pude ver as salas subterrâneas onde milhares de pastas estavam empilhadas em estantes de metal. E, para minha alegria, eu recebi um convite para passar alguns dias examinando o material sobre Brobek, recentemente catalogado. Gilbert, no entanto, jamais teve a chance de vê-los. Em julho do ano passado ele me telefonou para dizer que o melanoma que havia enfrentado há alguns anos tinha voltado: “Estou sofrendo um ataque, esta é realmente a minha última etapa”. Ao mesmo tempo em que eu recebia esta notícia, eu soube que a tradução para o alemão das memórias de Gilbert seria publicada em breve, ele queria alcançar a juventude alemã, a quem nunca culpou pelo passado. O layout estava pronto, a capa quase acabada. “Em quanto tempo poderemos lançar o livro?”, perguntei ao editor. “Estamos correndo”, respondeu ele. Naquele mês de agosto eu cheguei ao Hospital Americano de Paris com a foto da capa do livro no meu computador. Gilbert estava na cama, com uma agulha, por onde lhe injetavam soro, presa ao braço. Alguns dias antes sua esposa tinha contratado uma enfermeira que, ao ver a tatuagem de Auschwitz no braço dele, aproveitou a ocasião para falar mal dos pacientes judeus que já tivera. Mireille precisou conter-se, ela temia não conseguir uma substituta em agosto. Gilbert tinha dito certa vez que não tinha medo da morte, pois já a tinha visto de perto muitas vezes. Ele morreu dois dias depois que eu voltei para casa. Suas memórias foram publicadas na Alemanha poucas semanas depois, no último outono. Há poucos dias, eu recebi um telefonema do Memorial do Holocausto de Berlim. “Eu acabei de ler o livro do seu primo. Nós gostaríamos de usar alguns trechos dele no nosso site educacional para estudantes alemães”, disse Constanze Jaizer, uma pesquisadora do Memorial. Eu ainda não consegui visitar os arquivos da Siemens, é muito difícil para mim, agora que Gilbert se foi. Mas a morte dele não significa que o questionamento dele tenha morrido também. Talvez os arquivos contenham apenas listas com nomes. Ou talvez contenham respostas. Gilbert jamais saberá. Eu, talvez sim.   Artigo publicado no JTA e citado no WJC – World Jewish Congress em 03 de abril de 2013. Tradução: Adelina Naiditch]]>

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